terça-feira, 16 de dezembro de 2008

LIVRE ESCOLHA: Para chefe do MP-SP, promotor pode usar arma que quiser


por Fernando Porfírio

O fato de o réu ser promotor de Justiça o autoriza a portar arma de uso proibido ou restrito por lei? O chefe do Ministério Público de São Paulo, Fernando Grella, defende que sim. Para ele, a restrição geral ao porte de arma, feita pelo Estatuto do Desarmamento (Lei federal 10.826/03), não atinge membros do Ministério Público e da magistratura. O procurador-geral de Justiça de São Paulo entende que as leis de organização dos Ministérios Públicos e da magistratura — que são normas especiais — não consideram perigoso o fato de promotores e juízes portarem arma de fogo.

“A lei não restringe o porte de arma”, afirmou Fernando Grella em entrevista à revista Consultor Jurídico. Quando fala em lei, o chefe do Ministério Público paulista se refere à Lei federal 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público), à Lei Complementar federal 35/76 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e à Lei Complementar paulista 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo). “É um menosprezo à lei, à prerrogativa do promotor de justiça, fazer uma distinção que a lei não faz”, justificou Grella.

O caso está nas mãos dos integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que vão apreciar a denúncia de número 170.189.0/8-00, oferecida em setembro pelo procurador-geral de Justiça. Nela, figura como réu o promotor Pedro Baracat Guimarães Pereira, acusado de matar com 10 tiros o motoqueiro Firmino Barbosa. Os disparos saíram de uma pistola calibre 9 milímetros, de uso restrito. Segundo Pereira, em legítima defesa. Grella denunciou Baracat apenas por excesso de legítima defesa, e não por porte de arma de uso restrito.

Em agosto de 2001, quando outra denúncia por porte de arma de uso restrito contra promotor de Justiça foi colocada em julgamento, ainda na vigência da Lei federal 9.437/97, o Órgão Especial decidiu que não é o magistrado nem o promotor de Justiça que vai determinar a natureza da arma que ele deve possuir.

“Se a lei e os regulamentos dizem que a arma é de uso restrito, essa arma fica de fora do campo de escolha do interessado, que só pode optar pela arma comum, de defesa pessoal”, afirmou o desembargador José Osório, relator da denúncia contra o promotor de Justiça Igor Ferreira da Silva, acusado de matar a mulher usando uma pistola Taurus 9 milímetros, de uso restrito.

O desembargador José Osório sustentou que a restrição se impunha sob pena de se por em risco o próprio interessado (promotor de Justiça) e terceiros. “Nem poderia ser de outra forma, pois, em regra, é notório o despreparo nesse campo [do uso de armas] dos integrantes das carreiras jurídicas”, completou José Osório.

Desta vez, o desembargador Armando Toledo é o relator da denúncia contra o também promotor de Justiça Pedro Baracat. Depois de receber a defesa prévia do acusado, o Órgão Especial primeiro terá de decidir se aceita ou não a denúncia, na forma apresentada pelo chefe do Ministério Público.

Os fatos

“Uma arma ponto 40 é muito mais letal do que uma 9 milímetros. Então, até em termos fáticos, não há razão para essa discussão. Mas o fato é que a lei não restringe. A lei diz ‘porte de arma’ e, nessa linha, há entendimentos muito sólidos que defendem que não se pode, vamos dizer assim, amesquinhar o sentido da lei”, justificou Fernando Grella.

De acordo com o inquérito de número 2746/08, produzido a partir da versão do acusado e de duas testemunhas, por volta das 22h30 de 5 de janeiro, na rua República do Líbano, no Parque do Ibirapuera, capital paulista, o promotor de Justiça, que dirigia um veículo Honda Civic e estava acompanhado da namorada, foi abordado pela vítima.

Firmino Barbosa pilotava uma moto Yamara, modelo Fazer 250. Ainda de acordo com Pedro Baracat, o motoqueiro anunciou o assalto e levou a mão à cintura dando a entender que estava armado. Nesse momento, o promotor de Justiça sacou a pistola e atirou 10 vezes contra Firmino. Pedro Baracat deixou o local, segundo a denúncia, para buscar socorro policial.

A tese de Fernando Grella é um dos suportes da denúncia apresentada ao Tribunal de Justiça. O chefe do Ministério Público acusa o colega pela prática do crime de homicídio culposo (sem intenção de matar) pelo excesso de tiros, mas excluiu da denúncia o delito de porte de arma de fogo de uso restrito. Para o procurador-geral, o fato seria penalmente atípico.

O homicídio culposo é punido com pena que varia de um a três anos de detenção. Como a pena mínima é de um ano, o acusado tem direito ao benefício da suspensão condicional do processo, previsto na Lei federal 9.099/95. Esta foi a solução apresentada por Fernando Grella. O procurador-geral propõe à Justiça que esta determine que, pelo prazo de dois anos, o acusado seja obrigado a fazer cursos especiais de reciclagem de tiro e de porte de arma de fogo.

Fernando Grella se convenceu de que o delito praticado por Pedro Baracat só aconteceu porque o promotor de Justiça agiu com falta de cautela ao fazer 10 disparos sem considerar que a vítima, depois da primeira série de tiros (três ou quatros no total), não oferecia mais resistência ou não colocaria em risco a vida e segurança do acusado. O tipo da arma, na opinião de Fernando Grella, seria irrelevante, pois teria produzido o mesmo resultado qualquer que fosse o seu calibre.

“As circunstâncias do evento demonstram que o denunciado teve sua conduta justificada apenas no princípio, por razoável representação de um risco pessoal”, afirmou o chefe do Ministério Público. “Mas o denunciado laborou um erro indesculpável de avaliação das circunstâncias do evento e, em decorrência, efetuou uma segunda série de disparos certeiros contra Firmino, sendo-lhe absolutamente previsível, assim, a superveniência do resultado morte”, completou Fernando Grella.

Em outras palavras, o chefe do Ministério Público defende que o promotor de Justiça agiu em legítima defesa e censura o número de disparos feito pelo colega. Por fim, o procurador-geral sustenta que Pedro Baracat não portava irregularmente a arma, pois ao contrário da lei ordinária (Estatuto do Desarmamento), a Lei Orgânica do Ministério Público, ao outorgar o porte como uma prerrogativa funcional, não faz restrição ao calibre da arma.

Para o procurador-geral de Justiça, pouco importa para aferição de possível tipicidade do crime qual o calibre das armas portadas por promotores, procuradores e juízes porque o legislador não estabeleceu qualquer distinção e, por isso, tal diferença seria proibida ao intérprete fazer.

Jurisprudência

A tese formulada por Fernando Grella já foi apreciada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na Ação Penal 051.986.0/7-00 e pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 476.461. O Órgão Especial do TJ paulista entendeu que o uso de arma de fogo restrita por promotor de Justiça caracteriza conduta típica e delito e o STJ seguiu a mesma trilha.

Para os integrantes do Órgão Especial, em princípio, estão autorizados apenas o porte de armas de uso permitido, pois a finalidade para promotores e juízes é a autodefesa.

“O porte não está vinculado a uma arma determinada. Aliás, é genérico, autorizando o magistrado ou promotor de justiça a portar qualquer arma de uso permitido, desde que registrada”, afirmou o desembargador Franciulli Neto, que atuou na relatoria do pedido de denúncia oferecida pelo chefe do Ministério Público contra o promotor Igor Ferreira da Silva.

O ministro Gilson Dipp, do STJ, acompanhou o entendimento do Tribunal de Justiça e afirmou que o acórdão paulista não contrariou o artigo 42 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público nem o artigo 223 da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo.

“A circunstância de o réu ser promotor de Justiça não o exime do registro da arma que pretende portar e nem mesmo o autoriza a portar instrumento de uso proibido ou restrito pela lei, exatamente o causo dos autos, em que se apurou, mediante perícia, que a arma apreendida era de uso restrito da forças armadas”, concluiu o ministro.

Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2008

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